Total de visualizações de página

quinta-feira, 21 de julho de 2016

O CANALHA

Agora, em seu leito de morte, quando ainda lhe resta apenas um sopro de vida, Anselmo decidiu confessar-se a si próprio: "eu fui um canalha, sempre fui, através dos tempos. Não tenho perdão, o inferno me espera".
Lembrou que havia traçado a mãe, as irmãs, a esposa, a amante, a noiva e as namoradas de seus melhores amigos e vizinhos.
Os vizinhos foram perdidos nas mudanças, mas os amigos permaneceram.
Em suas visitas, tudo lhe vem à memória. Tem o ímpeto de dizer-lhes: "eu sou um canalha, um crápula, um pulha, tracei a senhora sua mãe".
Porém, faltava-lhe a coragem que somente os covardes têm nos momentos de perigo extremo.
"Vou passar a eternidade no infermo" - pensava - "se não me confessar como poderei entrar no paraíso?"
Pediu um padre. Disseram-lhe que o sacerdote somente poderia vir para a extrema-unção.
De que adiantaria? Nesse momento, a morte cerebral não lhe permitiria qualquer atitude.
Tentou refugiar-se nos textos bíblicos. O Novo Testamento apenas lhe trouxe maior remorso.
A consciência daqueles e de outros pecados cometidos.
Desesperou-se, queria pedir perdão a todos. Mas, como? Seria pior. É bem melhor para aqueles amigos continuarem a viver na ignorância. O conhecimento quase sempre é um desgosto profundo e traz decepções incontornáveis.
Ontem, dia do amigo, recebeu a visita de um amigo tão patife quanto ele. 
- Converteu-se, está lendo a Bíblia? - perguntou o amigo. 
- Quero me redimir dos meus pecados, mas a Bíblia me faz sentir ainda mais culpado - respondeu.
- Você está lendo a Bíblia errada, leia o Antigo Testamento - aconselhou o amigo.
Quando o amigo se despediu e estava saindo, tomou coragem e gritou: "transei com a sua mulher".
- Aquela cínica desavergonhada? Pensa que foi só você? - comentou o amigo antes de fechar a porta atrás de si.
Seguiu o conselho daquele amigo tão canalha quanto ele. Apelou para o Antigo Testamento e sentiu-se recompensado.
Logo no Gênesis, com as estórias de Sara e Abraão, Isaac e Rebecca, de Esaú e Jacob, de Lia e Raquel, com Abimalec e outros atores coadjuvantes, ficou aliviado de todos os pecados.
Sentiu a alma lavada e leve como a pluma.
Deu um último suspiro.
E partiu feliz.

Um comentário:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Caro Lacerda,

No AT não havia a concepção cristã de céu e inferno, mas o adultério era punido com pena apedrejamento. Ou seja, o marido traído poderia levá-lo aos shofetim (juízes) que aplicariam a pena.

Já na ideia da salvação pela graça defendida com base no NT, ele seria salvo pelo arrependimento sincero e a fé, sendo certo que isto não o obrigaria a uma confissão pública dos pecados.

Já a matriarcas bíblicas as quais citou só transavam com seus esposos. Nem Sara, quando esteve no Palácio do faraó o texto NÃO diz que ela teria dado pra ele.