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sexta-feira, 11 de maio de 2018

MENTIRA


Este poema de Affonso Romano de Sant'Anna foi publicado inicialmente no JB, em 1984, quando ocorreu a explosão da bomba no Riocentro. A bomba era pra explodir dentro do Riocentro onde se concentravam milhares de jovens no show de artistas em comemoração ao dia primeiro de maio.
Felizmente, a bomba explodiu dentro do carro dos militares que levavam o artefato. Explodiu no colo deles, matando o sargento e destruindo os genitais do tenente. A ditadura, em seu melancólico final, mentiu afirmando que os dois foram alvo de um atentado.
Tem tudo a ver com a contrafação que rola na hipócrita, mentirosa e cínica mídia que mente irracionalmente.

Fragmento 1
Mentiram-me. 
Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente. 
Mentem de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente mentem. 
Mentem tão nacional/mente que acham que mentindo 
história afora vão enganar a morte eterna/mente.
Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases falam. 
E desfilam de tal modo nuas que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade pela mentira, 
nem à democracia pela ditadura.


Fragmento 2
Evidente/mente a crer nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima 
e em Auschwitz havia um circo permanente.
Mentem. Mentem caricatural-mente.
Mentem como a careca mente ao pente,
mentem como a dentadura mente ao dente,
mentem como a carroça à besta em frente,
mentem como a doença ao doente,
mentem clara/mente 
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente, 
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. 
Mentem com a cara limpa 
e nas mãos o sangue quente. 
Mentem ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre. 
Mentem fabulosa/mente como o caçador 
que quer passar gato por lebre. 
E nessa trilha de mentiras a caça 
é que caça o caçador com a armadilha.
E assim cada qual
mente industrial/mente,
mente partidária/mente,
mente incivil/mente,
mente tropical/mente,
mente incontinente/mente,
mente hereditária/mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país de mentira diária/mente.

Fragmento 3
Mentem no passado. E no presente passam a mentira a limpo. 
E no futuro mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu quem mente
mas o tribunal que o julga herege/mente.
Mentem como se Colombo partindo do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira um continente.
Mentem desde Cabral, em calmaria, viajando pelo avesso, 
iludindo a corrente em curso, transformando a história do país num acidente de percurso.

Fragmento 4
Tanta mentira assim industriada 
me faz partir para o deserto penitente/mente 
ou me exilar com Mozart musical/mente 
em harpas e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.
Penso nos animais que nunca mentem.
mesmo se têm um caçador a sua frente.
Penso nos pássaros cuja verdade do canto nos toca
matinalmente.
Penso nas flores cuja verdade das cores escorre no mel
silvestremente.
Penso no sol que morre diariamente
jorrando luz, embora tenha a noite pela frente.

Fragmento 5
Página branca onde escrevo. 
Único espaço de verdade que me resta. 
Onde transcrevo o arroubo, a esperança, 
e onde tarde ou cedo deposito meu espanto e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo onde o advérbio e o adjetivo 
não mentem ao substantivo
e a rima rebenta a frase numa explosão da verdade.
E a mentira repulsiva se não explode pra fora
pra dentro explode implosiva.

                                                   

“Só não mais terá valor quem mente quando a gente, usar a mente.” (comentou uma ex-blogueira e ex-amiga quando publiquei o poema

pela primeira vez)