Quando
a ditadura proibiu a exibição de “Laranja
Mecânica”, de Kubrick – Oscar na década de 70 – aproveitei uma viagem que
fiz a Livramento/RGS, atravessei a rua e vi o filme do outro lado, em Rivera, uma pequena
cidade do Uruguai onde não havia censura.
Dez
anos depois, o presidente Sarney proibiu a exibição do filme francês “Je vous salue, Marie” em que Godard
discutia a virgindade da mãe de Jesus. Fiz a mesma viagem e vi o filme no mesmo
cinema de Rivera.
O
filme foi um escândalo mundial pois questionou um dogma bíblico e a autoridade
da igreja católica. Os fundamentalistas não aceitaram que Maria, uma jovem estudante inocente e virgem que jogava basquete e namorava José, um motorista de táxi ciumento, aparecesse nua diante de
um ginecologista para examinar sua gravidez e virgindade.
Os
espectadores revoltados com o enredo, no qual o anjo Gabriel é um cara comum e truculento que chega de avião
para, de forma grosseira, anunciar que Maria estava grávida, queriam depredar o
cinema em Versailles. Os revoltosos somente foram contidos com a intervenção de
forças policiais.
A
intolerância religiosa alastrou-se em todas as cidades do mundo com o apoio de
setores conservadores da igreja, embora alguns bispos franceses tentassem a
pacificação dos intolerantes.
Godard
se deu bem. A imprensa dedicou ao filme centenas de artigos que resultaram em
extraordinárias receitas de bilheteria. Houve uma indignação internacional contra o filme,
proibido sobretudo nos países católicos. Manifestações ocorreram em todo o
mundo e até o Papa João Paulo II decidiu ver o filme. Condenou-o, dizendo que a
obra «deturpa e ofende o sentimento espiritual e o
sentido histórico dos valores
fundamentais
da fé cristã».
Godard,
agnóstico, catequizado desde criança no protestantismo - que nunca levou a Virgem Maria muito a sério - foi nivelado ao Papa católico e considerado o papa dos artistas.
Contudo,
não ocorreram maiores violências nem Godard foi ameaçado de morte, demonstrando
que o cristão é um povo mais manso. Diferente dos muçulmanos que respondem com
ataques terroristas à crítica aos seus dogmas. É bom lembrar, porém, que também
há terroristas entre os cristãos. Não podemos esquecer daquele sueco doido,
fundamentalista cristão que em 2011 cometeu dois atentados em Oslo, matando 76
suecos.
A
iconoclastia de Godard era apenas uma descrença na virgindade de uma mulher que
teve outros filhos. Dizem que foram sete. Essa descrença foi apresentada com um enredo ingênuo, belo e bem
articulado. Alguns, porém, consideraram um escárnio e ficaram revoltados com os
católicos que nada fizeram para impedir que Nossa Senhora fosse enxovalhada.
Não
é bem assim. O direito de criticar dogmas,
como fez Godard, é assegurado como liberdade de expressão. É preciso reconhecer
que existe na Bíblia muito de mistério passível de ser discutido pela razão
humana.
Atitudes agressivas, ofensas e tratamento diferenciado
a alguém em função de crença ou de não ter religião são crimes inafiançáveis. Foi
o que fez Charlie Hebdo.
Intolerância religiosa é crime de ódio e fere a
dignidade humana (CF, art. 5º, incisos VIII e XLII).
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