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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

JE VOUS SALUE, MARIE!

Quando a ditadura proibiu a exibição de “Laranja Mecânica”, de Kubrick – Oscar na década de 70 – aproveitei uma viagem que fiz a Livramento/RGS, atravessei a rua e vi o filme do outro lado, em Rivera, uma pequena cidade do Uruguai onde não havia censura.
Dez anos depois, o presidente Sarney proibiu a exibição do filme francês “Je vous salue, Marie” em que Godard discutia a virgindade da mãe de Jesus. Fiz a mesma viagem e vi o filme no mesmo cinema de Rivera.
O filme foi um escândalo mundial pois questionou um dogma bíblico e a autoridade da igreja católica. Os fundamentalistas não aceitaram que Maria, uma jovem estudante inocente e virgem que jogava basquete e namorava José, um motorista de táxi ciumento, aparecesse nua diante de um ginecologista para examinar sua gravidez e virgindade.
Os espectadores revoltados com o enredo, no qual o anjo Gabriel é um cara comum e truculento que chega de avião para, de forma grosseira, anunciar que Maria estava grávida, queriam depredar o cinema em Versailles. Os revoltosos somente foram contidos com a intervenção de forças policiais.
A intolerância religiosa alastrou-se em todas as cidades do mundo com o apoio de setores conservadores da igreja, embora alguns bispos franceses tentassem a pacificação dos intolerantes.
Godard se deu bem. A imprensa dedicou ao filme centenas de artigos que resultaram em extraordinárias receitas de bilheteria. Houve uma indignação internacional contra o filme, proibido sobretudo nos países católicos. Manifestações ocorreram em todo o mundo e até o Papa João Paulo II decidiu ver o filme. Condenou-o, dizendo que a obra «deturpa e ofende o sentimento espiritual e o sentido histórico dos valores
fundamentais da fé cristã».
Godard, agnóstico, catequizado desde criança no protestantismo - que nunca levou a Virgem Maria muito a sério - foi nivelado ao Papa católico e considerado o papa dos artistas.
Contudo, não ocorreram maiores violências nem Godard foi ameaçado de morte, demonstrando que o cristão é um povo mais manso. Diferente dos muçulmanos que respondem com ataques terroristas à crítica aos seus dogmas. É bom lembrar, porém, que também há terroristas entre os cristãos. Não podemos esquecer daquele sueco doido, fundamentalista cristão que em 2011 cometeu dois atentados em Oslo, matando 76 suecos.
A iconoclastia de Godard era apenas uma descrença na virgindade de uma mulher que teve outros filhos. Dizem que foram sete. Essa descrença foi apresentada com um enredo ingênuo, belo e bem articulado. Alguns, porém, consideraram um escárnio e ficaram revoltados com os católicos que nada fizeram para impedir que Nossa Senhora fosse enxovalhada.
Não é bem assim. O direito de criticar dogmas, como fez Godard, é assegurado como liberdade de expressão. É preciso reconhecer que existe na Bíblia muito de mistério passível de ser discutido pela razão humana.
Atitudes agressivas, ofensas e tratamento diferenciado a alguém em função de crença ou de não ter religião são crimes inafiançáveis. Foi o que fez Charlie Hebdo.
Intolerância religiosa é crime de ódio e fere a dignidade humana (CF, art. 5º, incisos VIII e XLII).

N.L.: o exame ginecológico de Maria confirmou a sua virgindade e gravidez. Não gostei muito do filme de Jean-Luc Godard. Prefiro o de Stanley Kubrick.

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