Não há cronologia na exibição das cenas, não se sabe quando é antes, durante ou depois da cena da canoa à deriva com um homem e duas mulheres que me parece sempre um flash back.
“O que eu quis provar em Limite é que o tempo não existe. Acho que consegui” – disse Mário Peixoto sobre o filme.
Não existe no roteiro uma trama, um enredo, uma história para contar. São apenas passagens mostrando “o inútil de cada um”. É preciso ultrapassar o limite da compreensão para tentar entender o que se passa.
Vamos ao prolongado roteiro das cenas que, talvez, o leitor tenha saco para ler. Será a mais longa postagem que faço no blog, mas é a prova de que eu tive saco para assistir ao filme e para tentar imaginar o imaginário do patrono da cultura de Mangaratiba.
COMEÇA O FILME
- a
primeira cena reproduz um cartaz que o diretor viu em Paris e que lhe inspirou
a realização do filme. É o rosto de uma mulher envolta pelos braços algemados
de um homem. Algemas absurdas como aquelas de prender os escravos pelas pernas;
-
surge, então, uma canoa à deriva em alto mar com três náufragos melancólicos.
Sugere a desolação, o desalento e a certeza da morte próxima; N.L.: até os dez minutos do filme, nada acontece naquela canoa com um homem e duas mulheres. Uma parece morta. Talvez, seja aqui que o espectador desista de assistir ao filme.
- a partir dos onze minutos, um casal que parece brigar sai de casa. Não se veem os rostos. O homem segura a mulher pelos braços. Ela se solta e vai caminhando pelo casario antigo de Mangaratiba;
- ela anda, anda, anda, até surgir a copa das árvores. E surge a mulher parada num caminho de terra. Ainda não se vê o rosto dela que continua a caminhar;
- a caminhar, a caminhar, a caminhar. Toda de preto, vê-se apenas a paisagem que ela vê. A seguir as rodas de uma locomotiva. Será que ela pegou o trem?
- aos dezessete minutos, a mão de uma mulher gira a manivela de uma máquina de costura e finalmente o rosto da costureira. A seguir veem-se botões, fita métrica, tesoura, carretel de linha. Será a mesma mulher?
- finalmente, algo acontece: a linha sai da máquina e a costureira tem que colocá-la novamente. Ela volta a costurar, a costurar, a costurar. Agora ela chuleia, chuleia, chuleia. E passa a admirar e acariciar uma tesoura. Ela deve estar pensando em matar alguém. O homem com quem brigou?
- após longo tempo, muda a cena. Os pés de outra mulher. Ou será da mesma? A câmera sobe e a mostra lendo um jornal. O rosto somente de relance. O jornal fala de uma fugitiva da prisão com a cumplicidade de um carcereiro. Ela matou, foi presa e fugiu da prisão?
- novamente os pés e as pernas da mulher. Agora mostra a meia desfiada. Antes não estava. O diretor tem fixação em pés e sapatos;
- a sujeira na rua levada pelo vento quase entra numa casa. E voltamos à canoa no mar. Será um flash back? Ou não?
N.L.: já são 25 minutos de filme e nada, absolutamente nada aconteceu.
- a fita está um pouco deteriorada pelo tempo mas vê-se perfeitamente o homem no barco brincando com dois gravetos na mão. Há um pequeno trecho que foi perdido;
- logo após, a mulher que parecia morta ressuscita. Come alguma coisa, levanta-se, troca de lugar e põe a mão no homem. A outra está na proa da canoa como a Kate Blanchet em Titanic;
- muda a trilha sonora, surge um peixe agonizando. Um pescador na praia limpa sua canoa. Mais peixes em um cesto. E outra canoa balançando à beira do mar;
- uma outra mulher lavando roupas em casa. Patos e galinhas. Uma fonte verte água na rua. Telhados, diversos telhados, muitos telhados;
- a praia novamente. Acho que é a praia do Saco. Algumas pessoas compram algo na canoa. Uma mulher sai com um cesto com abóboras. No momento seguinte há outras coisas no cesto, inclusive peixe. Notem que, às vezes, o cesto está cheio e outras não;
- e ela caminha, caminha, caminha pelas ruas de Mangaratiba;
- ela chega em casa e encontra um homem de chapéu sentado no alto da escada. Parece bêbado. Ela olha para a aliança em sua mão esquerda e para. Fica ali parada no primeiro degrau da escada durante bastante tempo e volta para a rua;
- a caminhar, caminhar,
caminhar, e, enfim, encontra alguém na rua. Um homem com quem fala um pouco e
volta a caminhar, caminhar, caminhar. Acaricia uma criança e segue seu
caminhar;
- repentinamente, surge
um enorme rochedo e a mulher lá em cima. Ela admira a paisagem, o mar, a praia.
A câmera gira e faz girar a paisagem. Faz sugerir um suicídio da mulher;- muda a cena e surge o teclado de um piano. Alguém aciona as teclas e não se ouve o som. Um homem. Seus calçados rotos. Uma taça vazia. Alguém coloca uma bebida e toma;
- o mar novamente, o rochedo e a mulher olhando o mar. Ela não se suicidou? Uma árvore torta, o mar e a mulher no alto do rochedo;
- escurece. Surge o homem de chapéu na rua. Pega uma ferradura no chão. A peça deve simbolizar algo que não consigo imaginar. Será a minha incapacidade de compreensão?
- ele caminha pela rua escura. Está também com um sobretudo. Entra no cinema. Tira o sobretudo, tira o chapéu. Coloca-os numa cadeira. O filme que está passando é “Carlito encrencou a zona”. O som do filme vem do piano que o homem toca. Sorrisos na platéia;
- e voltamos à canoa no mar. A mulher que parecia morta fala com o homem, mas não há legendas. Ela está muito triste. Assim como a outra. Assim como eu que, após cinquenta minutos de filme, ainda não vi nada de interessante. Apenas “o inútil de cada um”;
- a mulher da proa decide remar. Mas, ela não sabe remar. A canoa não sai do lugar e ela se cansa. Deita-se de bruços na proa com as mãos na água e assim fica por longo tempo. O homem continua brincando com os gravetos;
- agora, um casal bem vestido caminha na praia. É a praia do Saco. Somente se veem as pernas e os sapatos. Caminham, caminham, caminham por longo tempo como demonstram as pegadas;
- mãos dadas do homem e da mulher. E as nuvens, troncos de árvore, pedras, capinzal, o vento, plantas parasitas nos galhos das árvores. Novamente o casal. Árvore de galhos secos;
- o casal está tirando a roupa (opa! melhorou...) algo vai acontecer. Que nada! Tiraram só os sapatos para molhar os pés no mar;
- o mato, um coqueiro, um poste de energia com vários fios e diversos pontos de fixação. O mar;
- roupas do casal na relva. Ele volta do mar com ela no colo. Outra árvore seca;
- a canoa continua à deriva no mar. Nunca saberemos o que o homem dos gravetos fala para as duas mulheres. Até que são bonitas. Chegam-se pra perto do homem;
N.L.: sessenta minutos de filme. Pô! Vai ter que acontecer alguma coisa.
- aconteceu: mudou a trilha sonora. Surgem as pegadas na praia, troncos de árvore, o mato dançando ao vento. Acho que é o “vieira”. Troncos de árvores, mais plantas parasitas;
- novas árvores secas. Àrvores refletidas no mar. O mato não mais balança ao vento. Aquele mesmo coqueiro que não dá coco e aquele mesmo poste agora em negativo;
- árvores secas, velhas construções deterioradas. Pegadas na praia sendo apagadas pelas ondas;
- os pés de uma mulher na porta de casa e de frente para um homem com os pés sobre um capacho de ferro. Ele lhe beija a mão. Ela entra e fecha a porta. Os pés do homem sobre o capacho. O homem sai e fica o capacho;
- muda o cenário: surge um homem de terno e chapéu. Vem caminhando e, desajeitado, passa por cima da câmera;
- segue caminhando, caminhando, caminhando. Só se veem os pés. Que fixação, heim! Agora o vemos por cima caminhando. Caminhando, caminhando, caminhando;
- dois coqueiros com as palmas levadas pelo vento. Só pode ser o “vieira”. E o cara caminhando, caminhando. O mato, o vento e os pés caminhando;
- surge o homem de frente e sem chapéu. Acende um cigarro e continua caminhando. O cigarro apaga. Tenta reacendê-lo e não consegue. O "vieira" não deixa. Joga o cigarro fora e continua seu caminho. Caminhando, caminhando, caminahndo.
- agora está em frente a um portão de ferro. Nuvens negras no céu. É um cemitério;
- há um homem sentado em um túmulo. Segura uma aliança e parece meditar;
- o nosso caminhante abre o portão de ferro e entra no cemitério. Tem uma flor na mão e a coloca no mesmo túmulo;
- nosso caminhante de pé fica em frente ao homem sentado no túmulo. Um tem os cabelos esvoaçantes, o outro tem os cabelos com Gumex repartidos ao meio;
- é o próprio Mário Peixoto ainda novinho com 22 anos;
- ele olha a aliança e sorri para o outro que se vira e quer ir embora. Ainda sentado, segura-o pelo palitó;
- imagino que vai dar merda. Mas, não, Mário Peixoto apenas pede que acenda o seu charuto. O dos cabelos esvoaçantes acende um cigarro e se abaixa para acender o charuto. E joga o cigarro fora;
- ficam se encarando interminavelmente;
- o jovem Mário Peixoto diz: “Você vem da casa da mulher que não é sua” – e, apontando para o túmulo, continua – “supondo que ela seja minha como esta foi sua e lhe disser que ela é morfética?” Foi a única e absolutamente inútil legenda do filme;
- voltamos à canoa. De novo os dois no cemitério. O do chapéu o põe na cabeça e volta a caminhar, agora, com passos firmes;
- para, põe as duas mãos na boca e parece gritar como o Tarzan;
- embrenha-se no mato. Parece um canavial. Tropeça e cai sentado. Continua pelo mato. Às vezes, para e grita como Tarzan. A cena se repete inúmeras vezes;
- agora, ele está parado e recostado visto de cima. Continua a caminhada e surge num atracadouro à beira mar. Recosta-se numa pilastra. Parece passar mal;
- surge por trás dele os pés de uma mulher. Sempre os pés. Ela toca em suas costas. Ele se vira e vê a mulher comendo um salgadinho;
- acho que é a mesma mulher com quem ele caminhou na praia de mãos dadas. Aquela que o Mário Peixoto disse ser morfética. Ele a afasta de si e vai embora;
- depois disso, o mato, o mato, o mato. Dessa vez, parece uma plantação de aipim. Ou será de maconha?
- agora ele está de costas para o mar e diante de uma cerca baixa de arame farpado. Parece chamar alguém que não responde e vai embora. Caminha mais um pouco e cai;
- a câmera mostra por longo tempo os locais por onde ele caminhou e o céu sem nuvens. A praia, a montanha ao fundo. E volta a ele. Mostra apenas a mão imóvel. Um túmulo, a montanha, o céu escuro. As cruzes do cemitério. A praia entre as rochas;
- pescadores, redes e um barco de pesca saindo pro mar. Muitas redes. Redes e mais redes. Um barraco feito de barro e bambu. Barcos ancorados na areia;
- o mar lambendo a praia.
Pescadores costurando redes. O mar lambendo a praia. Lambendo, lambendo,
lambendo;
N.L.: perdoem-me se
estou sendo repetitivo. É o filme. E não estou me repetindo tanto quanto o
próprio.- barcos no mar. As cruzes do cemitério. Pessoas caminham na praia. Como sempre, só aparecem as pernas do joelho para baixo. Surge um personagem novo: um cachorro;
- e o homem volta a caminhar. Dá para reconhecê-lo pelos sapatos. Uma carroça puxada a burro. Outro cachorro. Diversas pessoas caminham pela praia. E voltam os pés do homem de chapéu. Vê-se que é ele mesmo quando aparece em plano americano;
- resolveu comprar passagem de trem. Não se sabe pra onde vai. O trem parte e voltamos à canoa. Será que ele entrou no trem?
- uma hora e quarenta minutos de filme e voltamos ao início;
- o mar se apresenta mais revolto, mas a canoa nem se mexe. Está imóvel como se estivesse em terra. Um galão vazio na canoa é mostrado várias vezes. Parece que acabou a água potável;
- avistam algo no mar. O homem resolve verificar e mergulha. Agora, a canoa balança;
- a mulher observa interminavelmente o mar e, logo após, vê que vaza água para dentro da canoa. Tentativa de suspense. É muita água entrando;
N.L.: lembro o suspense criado por Eisenstein, em “O Encouraçado Potenkim”, de 1925: o carrinho com o bebê descendo a escadaria de Odessa entre os tiros trocados por marinheiros revolucionários que enfrentam a repressão violenta da guarda do Czar russo. Filmada seis anos antes de Limite, esta cena de verdadeiro suspense já foi lembrada em outros filmes modernos. Inclusive foi copiada por Brian de Palma em “Os Intocáveis”;
- voltando ao roteiro, a mulher parece querer avisar a outra. Esta a empurra e aquela cai de costas. A primeira parece chorar. Ora surge o rosto de uma, ora de outra. Ora de uma, ora de outra. Ora de uma, ora de outra;
- o mar revolto, o homem sumiu. Ondas se debatem. E batem nos rochedos. E batem e batem e batem umas nas outras;
- após cinco minutos de mar revolto, as águas se acalmam. Surge uma das mulheres agarrada em um pedaço da canoa;
- e o filme termina com a cena inicial de uma mulher envolta pelos braços de um homem com as mãos algemadas;
- a outra mulher agarrada em parte da canoa ainda aparece. Será que ela sobreviveu?
- na derradeira cena, um bando de urubus que se fartava com uma carniça levanta voo.
F I M
Prometo. Juro que jamais
voltarei a tocar no assunto.
Cheguei ao meu limite.
Cheguei ao meu limite.
Um comentário:
Obrigada! Consegui imaginar o seu imaginário.
E foi legal que me fez rir em muitas cenas e em outras consegui ver a bela morfética que causou aquele desespero final no cara, quando soube que estava transando com a própria morte. Daí a cena do Tarzan desesperado!
E...não passou disso!
A sua versão escrita me ajudou muito, e deixei de lado o inútil de cada um.
Valeu
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